Edição AdF.11

Documento e Identidade

A relação entre arte e discurso gera, há bastante tempo, incansáveis pesquisas e elaborações de toda ordem. Instigados por essas discussões, propomos Atos de Fala: um evento de palestras-intervenções, vídeos-ensaios e esculturas-arquivos, que nos convidam ao pensamento sobre formatos reconhecíveis de discursos.

As performances que trazemos a este festival, são intervenções que ressignificam os procedimentos das palestras e o diálogo com a platéia. Os vídeos que integram Atos de Fala transformam o ensaio, conhecido gênero literário, numa nova forma de relacionamento entre as imagens, os gestos e as palavras. Já as esculturas-arquivo são trabalhos a partir dos rastros de cada palestra-intervenção.

Esse título, Atos de Fala, nos interessa, porque é um conceito proposto pelo linguista inglês John Austin. Um ato de fala é um discurso que importa não só pelo que diz, mas pelo que se move quando se diz. O que essa fala legitima, empodera, permite ou desdobra de ações, ou que procedimentos, ela delimita, remapeia, impede de ocorrer? Um ato de fala é um discurso performativo por notar o contexto e as relações de poder que através dele se (re)formam.

Não à toa o ato de fala é um forte constituinte das artes de performance. O que se diz quando se diz à Mexicanos imigrantes ilegais perdidos no deserto norte-americano onde há água por perto? E o que se diz quando se faz isso de dentro do próprio território norte-americano, com financiamento acadêmico, e através de celulares com GPS que foram dados a estes imigrantes para garantir sua localização? Como tais ações redefinem políticas governamentais, na medida em que a mesma instituição que investe no fechamento de fronteiras em prol de uma idéia de soberania nacional, também investe, à sua revelia, na localização de imigrantes ilegais, não mais para prendê-los e deportá-los, mas para promover-lhes ajuda humanitária? Em outro procedimento socio-político artístico, o que se diz quando se ouve um discurso de uma senhora com Alzeihmer e se investe nesta repetição com vários outros participantes para migrar da perda à poesia e construir novos sentidos que só a semântica cacofônica pode gerar? Ou como essa mesma condição de esquecimento é utilizada para gerar um vídeo que imprima a memória? Ou como uma cidade é re-registrada por novas palavras que fazem valer mais o afeto do que a semântica? ou como a platéia se vê como arquivo descentralizado de um espetáculo? Pode o espetáculo ainda ser espetáculo se a platéia é seu documento?

São com essas indagações que construímos Atos de Fala uma plataforma curatorial e de pesquisa que traz como seu primeiro evento o Festival que conta com Palestras-intervenções, Vídeos-ensaios e Esculturas-Arquivos e que acontece de 07 a 11 de Setembro no Centro Cultural Oi Futuro, em Ipanema, Rio de Janeiro.

Programação

Documento e Identidade

 

Atos de Fala acontece de 07 a 11 de setembro de 2011 Oi Futuro de Ipanema, no Rio de Janeiro. Das 13h às 21h.

07.09 – 19h
Ricardo Dominguez

Sustenance: A Play for All Trans [ ] Borders

 

A Ferramenta Transbordadora de Imigrantes (TBT), é um dispositivo criado pelo Electronic Disturbance Theater 2.0 e pelo b.a.n.g. lab da CALIT2 na Universidade da California, San Diego, e na Universidade de Michigan, Ann Arbor. Essa ferramenta permite que telefones celulares funcionem como um sistema pessoal de navegação segura pelas zonas de fronteira entre México e os Estados Unidos. Gesto de Artivismo, TBT funciona como um aplicativo que guia os caminhantes pelo deserto ao encontro de água, além poética e performativamente colocar-lhes a questão, “o que constitue o sustento?” Um retorno aos impulsos utópicos de hospitalidade, liberdade, justiça, e estética (poesia não é luxuria!), TBT se assemelha a máxima de Luis Alberto Urrea pelo “presente inoportuno”: “No deserto, somos todos estrangeiros ilegais.”

Sustenance: A Play for All Trans [ ] Borders é apresentado como uma palestra-intervenção para 5 vozes. No Rio de Janeiro, o texto em Português será performado por Ricardo Dominguez, Brett Stalbaum, Cícero Inácio da Silva e outros dois artistas brasileiros.

08.09 – 19h
Yuri Firmeza

D.C.

 

Apresentação de uma cena que se repete ao longo de filmagens pertencentes a um arquivo pessoal. Em seguida, leitura de texto com o auxílio de 10 participantes. O texto será lido em um telefone sem fio, em que cada voz será agregada à seguinte. Tal palimpsesto de vozes gera uma cacofonia que será operada em loop. Em determinados momentos soma-se à cacofonia a orquestração das falas, tornando-as uníssona.

09.09 – 19h
Jorge Lopes Ramos & Joseph Dunne (em colaboração com Persis-Jade Maravala & Zecora Ura)

Platéia como Documento

 

Como se arquiva um evento? Como esse evento é lembrado, historiado? Com Platéia como Documento abordamos o arquivamento de performances pela perspectiva do público, e não de críticos, jornalistas, artistas ou acadêmicos. Nosso interesse é o de acessar a memória individual de membros da plateia como material performático, oferecendo a riqueza de experiências desse grupo de indivíduos como o documento mais eloquente de um evento ao vivo. Para isso convidamos pessoas que assistiram a trilogia noturna Hotel Medea, apresentada no Oi Futuro em 2010, para reviver suas experiências da madrugada nos vários cantos, corredores e salas do Oi Futuro Ipanema.

Confira o Blog.
Clip: Prêmio Arte Hibrida – Prix Ars Eletronica

Denise Stutz

Até que você me esqueça

 

Este vídeo-ensaio é a busca de material para enfrentar o vazio de um novo processo de criação para um solo de dança . A proposta é através do dialogo com a imagem e com o registro experimentar qualidades de movimento, de presença e de ausência para um trabalho que em breve será esquecido pelas pessoas a quem ele é dedicado.

Enrique Diaz

O Deus no Arroz Doce

 

Juan e Maria Candida. Ele é de Asunción, ela de Ribeirão Preto. Ele carregava as malas dela, quando se encontraram em outro país. Há 55 anos. Os filhos são do México, Costa Rica, Brasil e Peru, nascendo entre malas e línguas. Um vídeo ensaio, um discurso incompleto de imagens que não terminam, uma quase memória, imagens que se colam e que cobrem outras imagens. A vida da casa, os espaços e os afetos, os tempos reunidos, como numa mesa de almoço. O deus no arroz doce, nas crianças, nas coincidências e nos desencontros.

Milena Travassos

Sortilégio, 2011

 

É madrugada; um quarto habitado por objetos, sombras, sons, encantos, corpo e memórias. Água e vinho, beber se banhar. Sorte, leitura e feitiço.

Sortilégio: Vem do latim sortilegium, composto de sortis (“sorte”) e legere (“ler”). Como se vê, inicialmente o termo indicava aquele tipo de adivinhação em que o sacerdote ou feiticeiro interpreta os padrões formados por objetos jogados ao acaso sobre uma superfície (como búzios, ossos, dados etc.). Com o avanço do Cristianismo, estas artes divinatórias passaram a ser condenadas pela Igreja, e o vocábulo adquiriu o significado genérico de feitiço ou bruxaria. Da mesma forma que feitiço, sortilégio é muito usado, em sentido metafórico, para designar o fascínio e o encanto que o enamorado sente pela pessoa amada.

Esculturas-arquivos

As esculturas-arquivos são trabalhos historiográficos sobre cada palestra-intervenção realizada na noite anterior. Cada artista intervem nos rastros de sua palestra-intervenção, rearrumando-os, adicionando materiais, ou até mesmo suprimindo-os. Esta peça ao mesmo tempo remeta ao acontecimento da noite anterior (arquivo) e se consituie como uma peça autonoma na medida em que mesmo quem não esteve presente à palestra-intervenção possa apreciá-la (escultura).

Artistas

De Palestras-Intervenções

Jorge Ramos

 

No final dos anos 90, Jorge foi estudar teatro em Londres onde criou sua base e reside até hoje. Suas criações foram adquirindo forma e personalidade próprias, resultando em momentos ambiciosos e energia contagiante. Conjugando o ensino na universidade de East London e uma impressionante atuação nas criações do Zecora Ura, seu grupo teatral, o artista constantemente empurra fronteiras e zonas de conforto, atraindo um público ávido por interações inovadoras. Foi a partir de seu ímpeto da interação com a platéia que convidamos Jorge para desenvolver uma palestra-intervenção para o Atos de Fala, na expectativa de ver como essa interação poderia se constituir através do formato proposto. A investigação da relação com o público adicionado ao mote do festival Documentos e Intimidades, fez Jorge propos-nos junto a Persis-Jade Maravala e Joe Dunne, a Platéia como Documento, um arquivo vivo do acontecimento. Essa proposição artística parece abrir um novo campo no pensamento e na prática da arte de performance.
A apresentação de Platéia como Documento no Atos de Fala conta com a participação de Joseph Dunno, artista e pesquisador em Londres, onde coordena o Arquivo Online de Histórias do Teatro. Ele investiga o impacto de tecnologias digitais na pedagogia e suas implicações no estudo de performances passadas.

André Lepecki e Eleonora Fabião

 

Acompanho há algum tempo o trabalho de André Lepecki e a Eleonora Fabião. André Lepecki é professor do departamento de Performance Studies da NYU e Eleonora Fabião professora do curso de Direção Teatral da UFRJ. Quando penso nos trabalhos desses criadores, fico especialmente interessado em como suas obras se organizam em torno de séries. É o caso de Palavrando que foi performado em diversas partes do mundo, e a cada lugar com variantes específicas do contexto em que eles (se) encontravam. Essa serialidade me parece bastante adequada ao pensamento de arte como processo. Além disso, ante à necessidade de inovação semântica tão exacerbada no mercado, a serialidade nos deixa ver os atos artísticos pelo que trazem de amadurecimento, recontextualização, intimidade e/ou desdobramento. É como nos 18 happenings em 6 partes de Kaprow reencenada por Lepecki e que coloca a performance repensada em sua própria temporalidade. Ou, ainda, como nas Ações Cariocas (e as de Bogotá, as Berlinenses, as Fortalezenses) em que Eleonora Fabião troca com quem quiser, percepções afetivas e políticas na vivência de espaços públicos, alguns dos quais sob poderes perversos que diminuem a própria potência do que podemos chamar de público.

Ricardo Domingues

 

Numa entrevista, Ricardo Dominguez se refere ao movimento Zapatista como uma revolução social feita pela rede, baseada numa ferramenta bastante simples: o envio de emails. Foi baseada nesta simplicidade de usos tecnológicos que o artivista desenvolveu o Electronic Disturbance Theater (EDT), e que utiliza a rede como um palco digital onde a matrix da performance pode ser reelaborada. Exemplos variam desde o FloodNet dispositivo que multiplica o acesso à páginas na internet interrompendo seu funcionamento por excesso de uso, ao TBT (TransBorder Immigrante Tool) que através de celulares com GPS informa a proximidade de onde há agua, e versa sobre os amplos siginificados de sustento para imigrantes mexicanos cruzando a fronteira e o deserto norte-americanos. No momento em que verdadeiras revoluções de singularidades facilitadas pelas redes sociais acontecem com enorme vigor no mundo árabe e na Espanha, Ricardo Dominguez, acompanhado de Brett Stalbaum apresentam-nos Sustenance a play for all trans[ ]borders.

Yuri Firmeza

 

Poucas obras sacudiram tanto os frágeis alicerces jornalísticos quando a criação de Souzousareta Geijutsuka por Yuri Firmeza. Poucas sacudidas a instituições foram tão propositivas quanto essa. Numa época em que a criação digital de avatares em redes sociais se torna tão comum, Yuri propos ao Museu de Arte Contemporanea do Ceará uma exposição de um famoso artista fictício japonês que os cadernos de cultura noticiaram sem nem mesmo fazerem uma busca mínima na internet. Literalmente expostos, os jornalistas escreveram por semanas editoriais ressentidos sem se dar conta de que pela primeira vez eles saiam da periferia crítica de uma obra de arte para se tornar a própria. Entre Fortaleza e São Paulo – onde acaba de concluir o Mestrado em Artes Visuais, o artista desenvolveu outras séries de trabalhos performáticos que nos lembram do vigor político de se relacionar com o mundo. Entre a delicadeza de frases soltas na página branca que reenquadram a noção de tempo da escrita, como em Ecdise e suas 4 ações Relações que experimentam movimentos paradoxais de integração e dissociação nos corpos e espaços, Yuri agora nos propoe D.C. uma palestra-intervenção em várias vozes.

Vídeos-Ensaios

Denise Stutz

 

Durante muitos anos a bailarina e coreógrafa Denise Stutz trabalhou sozinha na sala de ensaio. Um grande contraste para quem fundou o Grupo Corpo e compôs a cia. Lia Rodrigues de Danças. Neste processo solitário, diante da necessidade do olhar de fora da cena, distanciado, Denise usava uma filmadora para gravar seus ensaios e depois assistí-los. Bailarina, coreógrafa e primeira espectadora de si mesma, Denise se dirigiu por longos anos fazendo intenso uso do vídeo, mesmo que seus trabalhos finais não trouxessem qualquer vestígio desta tecnologia. O resultado foi uma rara interlocução entre corpo, imagem e palavra que produziu obras seminais como “Três Solos e um Tempo,” apresentada mundialmente. Da maestria desta interlocução, propusemos a Denise uma investigação mais profunda à materialidade do vídeo, que agora surje não só como um espelho estendido no tempo, mas como suporte de exibição de sua obra. Já de partida nos comove que uma artista que reaproveitava as fitas gravadas para registrar novos ensaios, e que portanto se utilizou desta tecnologia tanto como registro quanto como apagamento, proponha agora um vídeo entitulado “Até que você me esqueça.”

Milena Travassos

 

Lembro de quando assisti pela primeira vez ao conjunto de vídeos instalativos de Milena Travassos entitulados Sala de Jejum. Projetei-os em minha própria sala enquanto a habitava, e deixei os vídeos em loop para que de vez em quando me surpreendesse com aquele espaço que me era tão familiar mas que a obra de Milena me apresentava tão novo. Em seguida dei sorte de estar em exibições onde outras instalações de maior porte figuravam entre os destaques. Aconteceu na Bienal de Par em Par, Terceira Margem (2008) e no Salão de Abril 1980-2009 – De casa para o mundo, do mundo para casa, para mencionar algumas. Mas aquele primeiro contato me seguiu bastante forte, porque parecia a perfeita epifania das obras dela: algo que chega com a sutileza de se confundir com o próprio entorno e de repente de tão fixo nele – ou de tão fixo em mim – reverte toda a concretude do espaço em um trabalho sobre o tempo, em uma narrativa mitopoética. Justo por essa mitopoética tão presente nas imagens propostas pela artista, convidamo-na a apresentar um novo vídeo, desta vez como um vídeo-ensaio. Interessa-nos como versa o trabalho sobre a mitopoética, como ela engendra um evento sobre palavra, e se há lugar disponível para o seu uso.

Enrique Diaz

 

A idéia de Trans-cinema que as artes visuais aplicam ao pensar o híbrido da linguagem de vídeo fora da sala escura, certamente se aplica ao trabalho de teatro de Enrique Diaz. Idealizador do Coletivo Improviso, vigoroso núcleo de experimentação de linguagens no Rio de Janeiro, Diaz estabelece métodos de trabalho que se relacionam diretamente com o registro e pesquisas que se alinham às discussões mais correntes do campo documental no cinema: a relação com o acaso, o cotidiano inventariado em poesia, narrativas de errância e de cruzamentos de subjetividade, o testemunho do fragmento, o corte. Suas experimentações dramaturgicas não são exclusivas do Coletivo improviso e encontram ressonância já há bastante tempo na Cia. dos Atores, da qual Diaz é um dos fundadores. Sob sua direção, A Bao A Qu, Melodrama, e Ensaio.Hamlet são espetáculos marco da dramaturgia nacional. Diante de tantos trabalhos que orquestram corte e continuidade, dois movimentos tão constitutivos do cinema, convidamo-no à criação de seu primeiro vídeo, para que este campo das imagens possa trans-pirar ainda mais.

Links

Sites e vídeos

1. Dali ensina inglês
http://ubumexico.centro.org.mx/sound//Dali-Salvador/Dali-Salvador_Dali-Speaks_1960.mp3

2. Richard Serra – Boomerang
http://www.ubu.com/film/serra_boomerang.html

3. Arthur Omar – O Som ou o Tratado da Harmonia
http://www.youtube.com/watch?v=mPDiLKPp09o

4. Omar Fast – trecho de CNN concatenated
http://www.youtube.com/watch?v=RCD3IxCZpsM

5. Glauber Rocha – Abertura
http://www.youtube.com/watch?v=NEdZml1HlbY

6. TV não é TBT
http://www.youtube.com/watch?hl=en&v=uQTwKIpgaU8&gl=US

7. Zapatismo Digital
http://www.youtube.com/watch?v=O-U-he8LN3k

8. Tom Zé estudando “To Ficando Atoladinha”
http://www.youtube.com/watch?v=hubD31XaHqU&feature=mh_lolz&list=LLfUh_6fnOapA

9. O Queerpunkfunk de Solange tô aberta na Feira de Domingo
http://www.youtube.com/watch?v=qcDwdkeFYUM

Equipe

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Organização da Publicação
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